Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Metáforas da desigualdade social no Brasil

Aconteça o que acontecer, você merece”

É injusto que só três 3% da população, Fernando, três por cento, têm uma vida maravilhosa lá [Maralto], graças à pobreza, à miséria de todo o resto. Alguns aceitam essa injustiça, só que outros não. Outros lutam.” Rafael (Rodolfo Valente) ocupa, ilusoriamente, o lugar de vilão – odiado por todos – nos episódios iniciais da primeira série brasileira com distribuição mundial pela Netflix, sobretudo ao negar piedade a Fernando (Michel Gomes), cadeirante que supera seus limites físicos para encontrar redenção de seu próprio corpo no paraíso em disputa. Mas bastou uma fala, a que abre este texto, para que o suposto vilão deslizasse para outra lógica de sentido, como num processo de transmutação, em que o pão se transforma em corpo num ritual cristão.

3% é uma série criada por Pedro Aguilera e que teve três episódios divulgados no YouTube. Em 2016, a Netflix assume a produção com direção do uruguaio César Charlone, radicado no Brasil e conhecido pelo seu trabalho de fotografia no filme Cidade de Deus (2002), mas destacaria ainda a direção em O banheiro do papa (2007).

A série impressiona pela acidez da narrativa e pelo cenário apocalíptico, num futuro arrasado pela lógica neoliberal que corroeu todos os resquícios de sociedade, resultando na ausência total do Estado. As conquistas seriam 100% mérito dos indivíduos. Mas, como diz o ditado: “O diabo está nos detalhes.” Se não há presença do Estado, cabe àqueles que detêm a ciência, a técnica e o capital determinar o rito da partilha dos bens acumulados, já que não há mais social para ser partilhado. Definido o processo, iniciam-se os novos jogos vorazes. Jovens com 20 anos disputam o direito de passar para o outro lado: o suposto paraíso terrestre. Só que somente 3% são aprovados e vão ocupar o lugar na ausência de jovens no paraíso de pessoas esterilizadas.

Sem Estado e sem lei. É o retorno à barbárie. É nesse contexto que a fala do personagem Ezequiel – interpretação hipnotizante de João Miguel – faz sentido: “aconteça o que acontecer, você merece”. Ele é o comandante do processo de seleção dos que se submetem a uma série de provas de resistência, de convívio e pressão psíquica para conseguir uma vaga e, assim, passar para o outro lado.

Os métodos de tortura

Uma distopia, que funciona como metáfora do nosso mundo, torna-se desigualdade econômica aos extremos – sem a classe média e sem as camadas populares que sonham com a ascensão econômica e cultural por meio dos estudos e do trabalho. De um lado, a maioria muito pobre e, de outro, uma minoria muito rica. A série é um roedor que se alimenta do véu da alienação para deixar aparecer o deserto do real. Mas não sem tensão, sem luta. Do lado dos pobres, um pequeno movimento conhecido como “A Causa” (resistência) luta pelo fim da divisão entre os que vivem no continente e os do Maralto, tendo entre as táticas para executar suas estratégias revolucionárias, se infiltrar no processo de seleção dos 3%. A Causa é chamada pelo seleto grupo (os que detêm os privilégios) de criminosos, terroristas etc. Do outro lado, do Maralto, os que promovem a miséria, que destruíram os espaços sociais cuja lógica de vida foi subtraída do Estado e de programas sociais, garantindo todos os privilégios ao seleto grupo.

Processo que estimula o olho-por-olho, dente-por-dente. Se for preciso, rouba, mata, humilha o oponente, tudo porque, como diz Ezequiel, “aconteça o que acontecer, você merece”. Não há exemplo melhor para mostrar o que é meritocracia numa sociedade em que o bem maior é o capital. O que mantém essa lógica perversa é a crença da maioria miserável de que o processo imposto pelo seleto grupo é justo, levando-os a praticar todo tipo de barbárie para ter o mérito de alcançar o paraíso terrestre.

Se há corrupção no processo, é por parte da resistência que se infiltra com o objetivo de destruir o seleto grupo. É claro, a resistência não tem os meios para difundir sua contra narrativa de forma massiva, resultando sempre na minoria da maioria de miseráveis. Por isso, Ezequiel faz lembrar um tirano que tortura e, ao mesmo tempo, promete o mundo às vítimas que ainda podem ser úteis, assim como o diabo levou Jesus a um alto monte para que ele pudesse ver a extensão da terra e, assim, prometer-lhe tudo: glória e riqueza.

Entre os métodos de tortura, Ezequiel usa o pau-de-arara, conhecido desde a ditadura militar do Brasil (1964-1985), quando membros da resistência ao regime eram presos numa barra de ferro atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho. A barra suspensa deixava o torturado pendura a cerca de 30 cm do chão, sendo submetido a eletrochoques, palmatórias e afogamentos. Na série, é a protagonista Michele (Bianca Comparato) que vai para o pau-de-arara.

Os 3% dos brasileiros se unem

No lado do continente, dos pobres que são os 97% da população, é uma grande favela e não poderia soar melhor para a personagem Joana (Vaneza Oliveria) do que a voz de Elza Soares, com a música Mulher do fim do mundo: “Eu sou mulher do fim do mundo / Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim.”

Ficamos agora na expectativa da segunda temporada, já que personagens da resistência passaram para o lado de lá. Mas até quando sobreviverão? Eles são os alvos de toda produção de sentido depreciativa. São interpretados como terroristas, assassinos etc. E, por que não, comunistas, petistas, socialistas etc.

Não há mérito maior do que figurar entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Não há dúvida. Talvez expressão máxima de um subgrupo dos 3%. Integram-se a eles, ainda, grandes empresários que acumulam cada vez mais fortunas, incluindo os donos dos conglomerados da mídia. E os políticos? Esses estão no Maralto somente para fazer o serviço sujo, assim como Ezequiel. A eles cabe fazer uma reforma da previdência seletiva, tirar direitos trabalhistas, congelar por 20 anos investimentos para saúde e educação etc. e assim ampliar a desigualdade social.

Na edição do El País deste domingo (11/12), a matéria de Antonio Jiménez Barca “Delação da Odebrecht revela troca de leis por doações a campanhas do PMDB” reforça a tese de que os políticos, numa sociedade em que vida é subordinada à lógica do capital, apenas executam os interesses da minoria privilegiada. Quando foge à regra, é fruto da resistência nos jogos de poder.

Algo de pobre no reinado de Temer

Desde que a resistência, sempre infiltrada, ocupou cargos importantes demais a ponto de ampliar a partilha da economia e ampliar os espaços públicos, logo foi marcada como um corpo estranho que deveria ser expurgado. Um quisto neste corpo higienista e ascético dos 3%.

Mesmo nos atritos no seleto grupo – assim como se pode ver na série – o objetivo é sempre o mesmo: manter os privilégios. É o que se assistiu nesta semana, com a conciliação entre o Senado e o STF para manter no cargo o presidente do Senado, Renan Calheiros, depois da crise gerada pela liminar do ministro Marco Aurélio, que retiraria o senador de suas funções. Entre uma fala e outra, podia-se ouvir que a decisão do STF teve, entre seus objetivos, garantir, com a permanência de Renan, a aprovação das reformas em curso como meio para “salvar o país”. Não seria para salvar os interesses dos 3%? Essa porcentagem me parece um exagero, 3% é muito. É claro que sempre há algo a mais, como o de barrar o projeto de lei de abuso de poder do judiciário.

Em 8 de dezembro, um dia após decisão do STF de manter na presidência Renan Calheiros, os grandes jornais destacaram a fala do senador: “Após desafiar STF, Renan diz que decisão judicial ‘é para ser cumprida’”, segundo a Folha de S.Paulo; “Renan diz decisão do STF ‘se cumpre’ e que é inocente”, segundo O Globo; “‘Decisão judicial do STF se cumpre’, diz Renan após julgamento de plenário”, para o Estadão. Ou seja, enquanto o país vive um estado de exceção permanente, os poderes conciliados precisam reforçar que já não há mais, leis que asseguram o estado democrático. Neste caso de Renan, temos a reprodução de um ditado moralista: “Faças o que eu falo, mas não faças o que eu faço”. Não é de estranhar que em uma das manchetes do Estadão, de 10/12, encontramos: “Renan defende nova sabatina para Marco Aurélio”, num gesto de vingança no Maralto da política brasileira.

Antes mesmo do ponto final deste texto, outra delação premiada coloca em risco personagens importantes do Maralto da política atual. Pelo visto, tem algo de muito pobre no reinado de Temer, que pode antecipar a série 3%.

Maralto é um condomínio privado

Em Mal-estar, sofrimento e sintoma, o psicanalista Christian Dunker repensa o Brasil a partir da noção de condomínio como lógica que organiza novas formas de sofrimento, causadas pela privatização do espaço público. As relações são estruturadas por processos de subjetivação neoliberal que criam as condições para a aceitação do abandono do Estado outorgando à iniciativa privada, literalmente, o bônus para organizar e definir as regras para os espaços e como e quem tem direito de usufruí-lo.

Entre os marcadores dessa nova forma de subjetivação capitalista, a emergência dos condomínios privados, na década de 70. Alphaville não é somente o nome de um dos primeiros condomínios privados de São Paulo, mas também do filme de Jean-Luc Godard (1965). No filme, Alphaville se passa numa cidade futurista, dominada pelo computador Alpha 60 (uma das formas do grande Outro), que aboliu os sentimentos – um grande pesadelo.

Ironia involuntária, condomínios habitacionais privados criam ilhas nas cidades violentas desimplicando indivíduos com o espaço social. Essas ilhas tornam-se modelo de consumo e, enquanto lógica, se integram ao imaginário de todos. Mas novas formas de sofrimento surgem a partir da lógica do condomínio como expressão do desejo de que algo poderia mudar. Se o sofrimento é uma das expressões do desejo que aponta para algo que falta ao sujeito, as produções culturais carregam também esses traços, com uma voz que ressoa ao fundo e não se pode entender, mas que mobiliza nossas ações, nossas produções. Neste caso, por mais ficcional que possa ser uma produção, como um filme, ela traz parte de nossa verdade, como expressão do desejo de mudança.

A política enquanto prática social está na resistência

O Maralto como o exemplo do condomínio tem a função fetichista de fazer com que a grande maioria – que não se beneficia com a privatização da vida – não se rebele contra os ricos. Ao contrário, as famílias, sufocadas em favelas, se repetem (gozam) no sofrimento de criar seus filhos para participar de um processo de seleção em que somente 3% conseguem passar para o outro lado, ou seja, para serem incluídos no condomínio.

Fora do condomínio está o espaço da vida nua, para usar a expressão de Giorgio Agamben, em que o sujeito é condenado a sucumbir na sua própria animalização. A vida nua é a zoé, mera existência biológica. Mas, o continente não se resume a isto. É também um espaço onde forças se rearranjam em movimentos de luta, como já vimos. Do outro lado, as sofisticadas técnicas que permitem estabelecer a envergadura da relação de poder, desde o processo de seleção até o ritual de passagem – que culmina na esterilização dos corpos – operam sobre os sujeitos, despindo-os de toda humanidade, tornando-os vida nua. Ao contrário, a vida enquanto existência política, na série, não se encontra nos que aderem ao sistema, independendo se estão no lado de cá ou de lá, mas, justamente, na resistência. Há, somente, política na resistência.

Se a PEC 53 foi aprovada prejudicando, sobretudo, os mais pobres, a política de fato tem sido feita nas ruas, com repercussões em vídeos divulgados por sites colaborativos, como o Jornalistas Livres, que mostram reações sem fazer o movimento da grande mídia corporativa de criminaliza as manifestações pós golpe. No dia 14, Jornalistas Livres divulgaram, nas redes sociais da Internet, os protestos do dia 13, em São Paulo, em que milhares de manifestantes foram às ruas em repúdio a aprovação da PEC 55. Entre os locais escolhidos como alvos dos protestos, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) acusada de ter financiado parte do golpe de 1964 e o de agora, de 2016, com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. A política se faz na resistência e não nos espaços permitidos, já que as regras são formuladas pelo grupo do Maralto, sobretudo quando a resistência foi golpeada nos espaços legalizados de disputa.

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José Isaías Venera é jornalista e professor universitário